Coisas estranhas
Hoje estive desde cedo na minha esplanada. Foi o dia de ver passar a gente da minha terra. Muitos foram para outras terras. Foram visitar a família ancestral. Cedo, para mim, é cerca do meio-dia. Mais cedo é terrorismo psicológico. Não aguento. Fico com mau aspecto. Há quem me queira levar ao médico.
Depois de cumprimentar os habituais clientes e os empregados de sempre. Fazemos o pedido e somos servidos do que já sabem que queremos. O jornal. Algumas conversas cruzadas e as piadas de toda a vida. Trocam-se informações e recebem-se palpites. Nesta época há quem leve sacos de amêndoas, folares e ovos de chocolate. Passam coelhos que ninguém vê. Passa toda uma vida escondida. Passa a procissão do dia a dia.
Há menos carros. Anda tudo aterrorizado com a falta da gasolina e do gasóleo. Está tudo nas bombas. Tudo agarrado à mangueira. Há quem tenha comprado gasolina até ao fim da vida. Os telejornais exploram até ao máximo o filão. Têm que encher vinte e quatro horas de notícias. Ouvem toda a gente. Os que sabem e os que nada entendem. Os políticos fazem a sua aparição. Parece que o país está em estado de sítio. O deus petróleo.
É então que me lembro dos doidos da minha terra. Todas as terras têm, pelo menos, um doido oficial. O fora da norma que, acicatado, entra em parafuso. Eu gosto dos fora da norma. Por vezes penso onde andarão aquelas cabeças. Inventar um mundo só seu não é tarefa fácil. Em cada doido há uma dose de criatividade imensa. Há elucubrações fantásticas. Histórias que eu gostaria de me ter lembrado e inventado. Um pouco como as obras dos pintores. Por vezes tudo parece fácil depois de feito. Só que nós não tivemos imaginação para o fazer.
Há loucos que têm namoradas imaginárias. Que de tudo isso falam com normalidade. Falam até de filhos que já tiveram e nunca ninguém viu. Tudo inventam com uma “normalidade” que, algumas vezes, nos põem a pensar sobre a realidade.
Há quem tenha a mania que é piloto de aviões e convide outros, enquanto bebe mais um whisky, a apresentarem-se no aeroporto às nove da noite.
«Queres ir para a Austrália, queres ir? Vais comigo no cockpit. Está às nove no aeroporto.» Tem sempre um boné com um símbolo da aviação. Umas asas douradas que sobressaem do negro. Um bigode que vai cofiando. Há quem diga que sim. Antes de sair ele volta a falar: «Então às nove, não te esqueças.» E segue caminho. As pernas um pouco arqueadas.
Há outro que grita palavras de ordem conforme o que lhe aparece. Tudo o que diz faz sentido com o que vê. Passo estugado, passa pelas montras e grita o que lhe vem à cabeça. Assim se passeia pela terra. Um cansaço para quem o vê e ouve.
Vou falar também da fadista. Aquela que põe a mão na anca, numa esquina qualquer, e canta um fado enquanto faz olhinhos aos homens que passam e lhe agradam. Não pede. A sua arte é pura. Assim se realiza. Um sorriso aberto no rosto marcado.
Estes são alguns dos loucos da minha terra, vistos por alguém que não tem a certeza de ser normal. Qual será a opinião deles sobre mim?
«Olha que tu nem sempre vens muito bem daquela esplanada.»
Voz de Isaurinda.
«Estás a dizer que venho meio louco?»
Respondo.
«Ou como diz o teu neto: doido de todo.»
De novo Isaurinda e vai, a sensatez na mão.
Jorge C Ferreira Abril/2019(206)
Para onde nos leva esse seu olhar sempre que nós escreve. Obrigada.
Obrigado Isabel. Um olhar que se pode virar para dentro de nós. Abraço
Como gosto do teu olhar a vida, na tua esplanada! O olhar atento a cada pormenor dos dias que passam tão rápidos que nem parecem ter 24h. A lucidez e a falta dela. A sã loucura que faz a diferença para melhor. Essa que sempre me acompanhou. Ouço a minha neta dizer: és uma avó muito à frente. A minha filha: mãe, que loucura é essa, toma juízo. Disse eu, apenas, que me falta fazer uma tatuagem.
Beijo, meu amigo. É maravilhoso, um gosto gigante poder ler o que escreves.
Obrigado Manuela. Essa tatuagem que seja a marca de acto de vida. Eu tenho três brincos. Três passos importantes. Não sei como agradecer tanta generosidade. Abraço
Gostei que tirasses o pano da mão da Isaurinda para lhe colocares a “sensatez” mas gostei, ainda mais, de saber como o teu neto te vê!
Sobre a crónica, gostei dela toda e das várias situações que referes começando logo pelo “terrorismo psicológico” . (é pena que aqui não dê para se porem emojis…)
Obrigado Maria. Sabe tão bem ler o que escreves. Grato por tudo. É os netos são uns ternos desbocados. Abraço
Fantástica crónica! Como diz o provérbio: “De poeta e de louco todos temos um pouco”…Mas loucura saudável é quase um dom! Obrigada, meu amigo. Um beijinho
Obrigado Madalena. Deixemos a nossa parte de loucos fluir, pairar. Seremos mais saudáveis. Abraço
No meu bairro há dois loucos que chamam a atenção e que conheço bem. Familiares de amigas, se não mostro que já os vi, gritam-me pelo nome. Eu dou-me bem com pessoas estranhas, diferentes, que fogem às regras. Por isso, assim que tive oportunidade de escolher o Serviço para onde gostava de ir trabalhar, não hesitei: Psiquiatria, pois então. Nuca me arrependi, aprendi muito, era respeitada e sei que, sem vaidade, deixei uma marca. Um dia poderei contar-te como, chamada a ajudar em situações mais difíceis, as resolvia colocando-me ao nível da ” loucura ” da/os doentes. Mas não é para falar das minhas experiências profissionais que aqui estou. Gostei muito da tua crónica, como sempre. E sei que, além de outras magias, até já “foste” à Austrália, já estiveste com a namorada de um que ta apresentou, que constróis estórias das “mil e uma noites” com tudo o que viste, escutaste e imaginaste. As tuas publicações que sempre procuramos, trazem consigo os sonhos que a dormir e acordado preenchem parte da tua vida mais colorida que tantas/os apreciam.É, também, a tua marca. E diz à Isaurinda que, quando o teu neto diz que ” vens doido de todo” da Esplanada, é quando vens mais rico, mais pleno de ” vidas ” que, depois de contadas por ti, fazem a delícia dos que te lêem. Beijinhos amigo.
Obrigado Ivone. Tão rica a tua experiência. Quanta dedicação, minha Amiga. Deste e recebeste. Uma troca própria dos que não são interesseiros. Tudo o que disser para agradecer as tuas belas palavra, é pouco. Abraço
Início a leitura da crónica, não resisto a uma gargalhada quando referes o terrorismo psicológico se antes do meio dia. A época da Páscoa vista por ti, na tua esplanada, local de conforto. Passam coelhos que ninguém vê. Políticos, combustíveis, oportunistas, notícias construídas compulsivamente. Em cada terra existe um fora da norma. Um doido reconhecido. Conheci um em Castelo de Vide, o Moedinhas, pedia uma redondinha. Recebia a moeda e falava horas seguidas dos judeus que ali habitaram. Versão Moedinhas. Também o observei muitas vezes na esplanada do Café Central. Em cada terra também existe um café com o mesmo nome. A verdade é que não voltamos como fomos. A Isaurinda tem razão. Conhece-te tão bem. Amigo Jorge um abraço enorme.
Obrigado Regina. Tens razão. Quando visitamos a loucura algo muda em nós. Eu, por vezes, apetece-me ser doido varrido. Abraço
Eu também tenho uma tendência natural para gostar dos fora da norma. Há sempre neles algo que me encanta ou fascina. E tudo o que inventam com a tal “normalidade” de que falas nos põem-nos realmente a pensar. A pensar numa realidade que tantas vezes apetece fugir. Pilotar um avião até à Austrália , porque não? Que nunca percamos a capacidade de sonhar.
Ahhh mas eu tenho de conhecer essa fadista ! É na arte pura que nasce a verdadeira contemplação espiritual.
Coisas estranhas? Ou coisas belas?
Estranha, bela, é também a tua escrita. Sabes porquê? Porque faz-nos tantas vezes sonhar.
Vai, querido Jorge, continua a observar o mundo da tua esplanada . A Isaurinda (sempre com a sua sensatez), o teu querido neto e nós, teus admiradores, agradecemos. Sempre.
Abraço
Cristina
Obrigado Cristina. Esta gente habita em todo o lado. Por vezes habita em nós. Grato pelas palavras. Abraço
Por vezes sim. E ainda bem.
Mais um abraço e obrigada
Gosto da loucura “sadia” que nos ajuda a tolerar este mundo de “loucos de todo”.
Mais um excelente texto neste início de semana.
Nada ficou esquecido ( das amêndoas aos folares) da época que terminou.
Obrigado Idalina. Este mundo é menos mau com estes loucos que descrevo. Muitas amêndoas. Abraço
E…de loucos todos temos um pouco,abespinhamo-nos com notícias de mortes e atentados.Estamos,estivemos na quadra da Páscoa,recolhimento e salvação tão apregoada que não nos serve para nada.A vida do teu dia a dia meu querido amigo vista sob o teu olhar,conta-nos e lemos esse teu olhar pela paisagem da vida,pelo menos eu leio com avidez que me caracteriza do gosto de ler. Sem amêndoas nem folares nem nada alusivo à Páscoa,passou-se…cada um tem a cruz ou não que melhor se ajeita às suas crenças. Abraço meu amigo,até que escrevas uma outra crónica estou já a imaginar o que será…
Obrigado Célia. A vida tal e qual a fazemos ou inventamos. A loucura que, por vezes, nos falta. Abraço